
(Primeiro parágrafo/ autoria de Tabajara Ruas. Continuação/ Catia Schmaedecke) / Projeto "Conte um conto..." Prefeitura de Porto Alegre RS - Feira do Livro ano 2019.
"Se Deus existe, e se Ele for misericordioso, a minha morte será rápida. Mas há muito tempo que não acredito mais na sua existência, e muito menos na sua misericórdia. O garrote vil foi projetado para ser doloroso. E para ser letal. Essa é a sua função. Nada a poderá alterar. Talvez eu não acreditasse em Deus quando estava dentro daquele navio. Porque lá, naquele navio, Ele não foi misericordioso e a única prova de sua existência foi o horror e a desolação. No naufrágio morreram quase todos os padres, menos dois, ambos de nome Antônio. Tomaram caminhos diferentes e nunca mais se viram. Eu sou um dos dois Antônios, o que veio para o sul. Enquanto espero a madrugada, ouço os passos lá fora e penso: garrote vil, que nome para uma máquina de matar." (Tabajara Ruas)
"Agora me dou conta de que, embora tenhamos atravessado juntos o céu e o inferno sobre as ondas, eu quase nada sei a respeito de meu homônimo. Ele era chamado por todos de Antônio do Espírito Santo e, até onde consigo lembrar, eu sou o Antônio Maria. Também lembro que fomos impedidos de abençoar o navio antes de zarpar do Porto de Málaga.
Em alto mar, quando sobre as nossas cabeças as nuvens densas e escuras nos obrigaram a dobrar os joelhos e a repetirmos o sinal da cruz, pressentimos que o castigo seria algo inevitável. Logo o aguaceiro tomou conta do convés. Quando pensávamos que nada poderia ser pior do que aquela tempestade, o navio foi atingido por um tiro de canhão. Em meio aos gritos dos companheiros eu pude ver a Fé de Antônio do Espírito Santo se desprender de seu corpo e o olhar cobrir-se de horror. Em seguida um tremor passou a sacudi-lo da cabeça aos pés.
Enquanto ficamos à deriva agarrados a um pedaço do St. Constantine, assistimos o seu mastro submergir até desaparecer por completo.
Antônio do Espírito Santo encontrou uma moeda dentro do bolso. Com o semblante coberto pela palidez, os lábios arroxeados, ele esticou a mão débil para mim. “Pegue Caronte!”. Em seguida perdeu os sentidos. Reuni todas as forças para segurá-lo junto à madeira. A claridade da lua cheia se derramou sobre a escuridão até o amanhecer, quando o resgate chegou. Então, tive certeza. Deus tinha mesmo, nos abandonado.
"Preso nesse calabouço à espera do fim, por hábito, eu ajoelho em posição de súplica. Aqui o bloqueio da luz natural faz o tempo deixar de existir. Mas eu sei que a vida continua lá fora. Eu sei.
"De súbito ouço um rangido. O fogo das tochas reflete uma sombra na parede do corredor, sobre a rachadura, ali onde verte a umidade abjeta. A grade levanta e por um segundo eu fecho os olhos. Uma massa de músculos encapuzada me desperta da modorra. Entrego a moeda para o meu algoz.
Com uma força gigantesca ele me ergue sobre os seus ombros e corre. No lado de fora sou jogado sobre o dorso de um cavalo. Enquanto o vento sul empurra-lhe o capuz, lá de cima resplandece a lua cheia. Somos dois Antônios em fuga. Levamos juntos agora apenas um sobrenome.
(Catia Schmaedecke)
Porto Alegre, novembro de 2019.
(Projeto da Prefeitura Municipal de Porto Alegre RS/
“Conte um conto,...”
Feira do Livro de Porto Alegre RS / Ano 2019)